19/10/2020

Só Questões Hermenêuticas?

Autor: João Batista Ericeira sócio majoritário de João Batista Ericeira Advogados Associados

Dois acontecimentos dominaram os meios de comunicação semana passada. A soltura do traficante de drogas pela via de HC junto ao STF. O paciente condenado duas vezes em segunda Instância, beneficiou-se do disposto no artigo 315, parágrafo único, do C.P.P. E o Mandado de Busca e Apreensão determinado por Ministro do STF, na residência do Senador de Roraima, seguido de seu afastamento do cargo.  O caso do HC do traficante reviveu o debate entre os seguidores da corrente da “mens legislatoris”. Segundo eles, ao aprovar o pacote anticrime, o Congresso visava obrigar o sistema judicial a revisar a cada noventa dias as prisões provisórias entulhadoras dos presídios.  Quando se diz sistema judicial inclui-se juízes e membros do ministério público.

E da “mens legis” sustentando que a partir da vigência, a Lei adquire vontade própria, autônoma. Os seus intérpretes e aplicadores devem levar em conta o contexto e a função social de que se deve revestir no momento das decisões. O entendimento é majoritário no Direito brasileiro contemporâneo. Mas o problema não se situa somente no plano de discussões acadêmicas teóricas ou forenses. Antes delas há a realidade cultural da sanha legiferante nacional, como se produzir leis fosse o caminho das soluções.

A sociedade brasileira caracteriza-se pela elevada concentração da renda e as consequentes desigualdades sociais. É lugar comum: a população carcerária se compõe em esmagadora maioria por pretos e pobres, e lamentavelmente, jovens. Os que não têm recursos para pagar advogados, e são colhidos nas malhas do narcotráfico, que os transforma em “aviãozinhos”. O Estado não lhes dá escola, nem enseja empregos. Não coloca também defensores públicos para tratar de suas prisões. Resultado, o artigo 315, parágrafo único, só poderia beneficiar pessoas ricas, com capacidade financeira para pagar advogados, como no caso do traficante internacional. Sua soltura sensibilizou a opinião pública, suscitou pruridos do STF.

Ao legislarem não definiram a responsabilidade revisional, estabelecendo prazos e limites para efetivar solturas. À falta disso, no campo das omissões, o Ministro exarou a liberação, seguida da revogação do Presidente da Corte, posteriormente confirmada pelo Plenário. 

Aqui comporta um registro.  A historiadora Lêda Boechat Rodrigues, autora de significativa obra de Direito Comparado, evidenciando as semelhanças e diferenças entre as cortes supremas dos Estados Unidos e do Brasil, relata que o protagonismo entre os americanos é do Colegiado, nunca do juiz individualmente. Lá, nunca se vê juiz da Corte Suprema dando entrevistas para jornais, revistas, televisões e rádios. Aqui, não há um dia em que ministros do STF não sejam o foco principal da mídia, opinando sobre assuntos judiciais e extra. Pululam as decisões monocráticas em que são apresentados ora como heróis, ora como vilões. Não é bom para eles, nem para a instituição.

Não há dúvida. Mudanças regimentais urgem para priorizar o colegiado e a colegialidade. Juiz não é herói ou vilão, é um intérprete e aplicador da Lei. Se não estivermos satisfeitos com as suas decisões, recorramos. Não se admitindo ataques à instituição. Ela deve ser preservada em todas as situações, o juiz-funcionário não é a instituição. Atacar o Poder Judiciário é mesmo que disparar mortalmente contra o regime democrático.

Se há mudanças no funcionamento do Judiciário, façamo-las por leis que possam estabelecer mandatos para os juízes dos tribunais e da Corte Suprema, e na indicação dos membros desta última, poderá inserir-se a maior participação do Poder Legislativo. Em tudo tenhamos a certeza, quaisquer que sejam as alterações, o Judiciário e a Advocacia não precisam ser populares. Nem sempre a popularidade corresponde à Justiça. Essas questões não são apenas hermenêuticas, são sobretudo políticas. Boa parte delas se resolve com a melhoria da gestão.

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