06/12/2022

As raias da imunidade parlamentar na omissão legislativa e o direito de regresso

Autor: Daniel Blume Pereira de Almeida

O presente artigo é um recorte da pesquisa realizada na UAL, em Direito Civil e Administrativo comparado, sob o título Omissão Legislativa e covid-19: Responsabilidade Civil do Estado no Direito Português comparado ao brasileiro.

Questões iniciais

Este artigo discute a Responsabilidade Civil do Estado por Omissão Legislativa, a partir de seus desdobramentos. Tratar desse tema provoca rever aspectos polêmicos por linhas tênues entre conceitos que, por vezes, parecem se misturar ou se incompatibilizar.

Ora, o legislador, que tem a responsabilidade de elaborar leis, recaindo sobre si o dano causado a terceiros, alvo, por sua vez, do direito estatal de regresso, é o mesmo que conta com a imunidade parlamentar. Eis a questão.

Em específico, a vítima deve ser ressarcida dos prejuízos sofridos, em virtude da omissão legislativa de que decorre a imprevisibilidade de uma dada situação que, por não estar tangenciada por lei, pode gerar o dano que precisa ser reparado.

Acontece que a omissão legislativa, consequência da lacuna no exercício de legislar, contrapõe duas situações conflitantes: a primeira diz respeito ao fato de que todo dano precisa ser reparado pelo seu responsável; a segunda refere-se a outro dispositivo legal que confere aos legisladores a imunidade parlamentar. Ou seja, como conciliar a responsabilidade por omissão com a imunidade parlamentar? A responsabilidade civil impõe limite à imunidade parlamentar, quando se trata de omissão legislativa?

Eis, portanto, o que se discute neste artigo.

Omissão legislativa, reparação do dano e imunidade parlamentar: Aspecto polêmico da responsabilidade civil do Estado

A responsabilidade civil consiste na necessidade imposta por lei a quem causa prejuízos a outrem de colocá-lo na situação em que estaria sem a lesão, mediante reconstituição natural ou indenização pecuniária. O Estado pode responder por danos causados pelo exercício de qualquer um de seus poderes, mesmo se o ato praticado for lícito, porém imponha a uma pequena parcela de pessoas um grande sacrifício em prol do interesse público.

À responsabilidade estatal está agregado o direito de regresso contra o agente público que procede com dolo ou culpa grave. O direito de regresso estatal contra parlamentares que tenham incorrido em omissão estatal ilícita e danosa é questão polêmica e sem consenso doutrinário. No pormenor, os sistemas jurídicos português e brasileiro são similares.

O autor lusitano Gilberto Dias compreende não ser compatível considerar o direito de regresso estatal quando há danos decorrentes do Poder Legislativo. Julga ser o legislativo colegiado e plural, o que torna impossível a aferição de dolo ou culpa grave de inúmeros parlamentares na aprovação de uma lei inconstitucional, que em regra passa pela posterior sanção presidencial, até porque o servidor só responde em regresso, se incorrer em culpa grave (negligência grosseira) ou dolo.2 Caso proceda com culpa leve (negligência), somente o Estado é responsável.

Dias defende, ainda, que decorre do inciso I do art. 157º da CRP - Constituição da República Portuguesa o princípio da irresponsabilidade civil dos deputados pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções; que, em se tratando de uma função cujo exercício pressupõe uma margem de liberdade de conformação política, traduzida na escolha de medidas julgadas mais adequadas em cada momento, com vista à realização do interesse público, não subsistem razões para a responsabilização patrimonial dos titulares dos órgãos legiferantes; e que a imunidade parlamentar parece ser, assim, uma razão da sua irresponsabilidade.3

No mesmo curso, a brasileira Regina Maria Macedo Nery Ferrari defende o seguinte: a Constituição da República Federativa do Brasil, ao se referir à ação regressiva, estabelece como condicionantes a culpa ou o dolo do agente público; consequentemente, apenas poderá haver regresso se presentes tais pressupostos (art. 37, § 6º); não parece pairar dúvida quanto ao cabimento da ação de regresso quando se está diante de atos legislativos atípicos de autoria do Poder Executivo, a exemplo de medidas provisórias, pois identificado e individualizado o agente, qual seja, o Presidente da República; diversa é a hipótese de cabimento de ação de regresso contra os parlamentares, até porque o art. 53 da Constituição Federal afirma que os deputados e senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos; tal imunidade é irrenunciável, pois de interesse público para o bom exercício do mandato e não decorre do interesse pessoal dos legisladores; a sua posição contrária ao cabimento da ação de regresso em face dos parlamentares, no caso da responsabilidade extracontratual do Estado por atos legislativos típicos, fundamenta-se na imunidade parlamentar e na colegialidade das votações, por tornar impossível a individualização da pena ou do dolo;  cada parlamentar é protegido pela imunidade inerente ao cargo e também o é o parlamento; o colegiado sintetiza a manifestação da vontade de cada legislador, sendo impossível posterior ação regressiva.4

De fato, os membros do legislativo possuem imunidade parlamentar. Não podem ser responsabilizados por palavras, opiniões ou votos (art. 157º da CRP). Porém tal prerrogativa não pode ser interpretada como um cheque em branco aos parlamentares que venham cometer deliberadamente (ou por negligência grosseira) ilícitos que causem danos relevantes à população. O povo, inclusive, foi quem os elegeu. Acreditamos que há margens para que a imunidade não seja arbitrária.

Defendemos, assim, a existência de direito de regresso contra os parlamentares que, mediante dolo ou grave negligência, ensejarem a responsabilização civil estatal por ações ou omissões legislativas.

Neste sentido, Jorge Pereira da Silva assevera que pode haver deputados que intervêm no processo legislativo numa situação de conflito de interesses ou movidos por influências externas que sobre eles são exercidas; que, respondendo o Estado por ilícito legislativo perante os terceiros lesados, não pode se afastar a possibilidade de detectar, no processo legislativo, casos de dolo ou culpa grave, justificativos de um direito de regresso; que imunidade parlamentar tem natureza de garantia ao exercício do mandato popular, mas não de prerrogativa pessoal; e que a irresponsabilidade pessoal dos deputados não pode ser encarada como um dogma, especialmente quando exista responsabilidade criminal.5

Ora, a imunidade parlamentar não é uma cláusula de irresponsabilidade por ilícitos. Visa apenas garantir as condições de exercício do mandato de deputado. Com efeito, em casos extremos, como se comprovado que todo o parlamento (ou uma grande maioria capaz de definir uma votação) editou determinada lei para atender aos interesses de corruptores, caberá sim o regresso contra os parlamentares identificados. Idem, se um parlamentar contribuiu, em prol de interesses escusos, para qualquer ação ou omissão legislativa danosa que ensejou responsabilização estatal. Imunidade parlamentar difere de impunidade do legislador, quando age com dolo ou negligência grave. 

Considerações finais

A imunidade não significa impunidade parlamentar. É uma exceção ao regime comum, que jamais pode servir como escudo para corruptos. Cuida-se de uma prerrogativa para o livre exercício do mandato, mas não de um privilégio a serviço de interesses pessoais. E nem se diga que encontrar um parlamentar corrupto é difícil como se buscar uma agulha num palheiro, pois, no curso do processo legislativo - devidamente documentado e gravado, além de atualmente televisionado - há membros que protagonizam a aprovação (ou desaprovação) do projeto de lei, a exemplo de proponentes, líderes e diretores. Os demais são inocentes úteis. Descobertos, por meio de provas robustas, os responsáveis diretos pelos danos decorrentes dos atos legislativos danosos não só podem como devem responder uma ação de regresso.

A respectiva ação judicial regressiva prossegue nos próprios autos da ação indenizatória originária do cidadão em face do Estado. Porém, doravante, apenas a pessoa coletiva de Direito público e o titular de órgão, funcionário ou agente.

Segundo Cristiano Chaves, nas sociedades contemporâneas, diminuíram os espaços de omissão estatal legítima. Pouco se toleram omissões do Estado contemporâneo, onde existe um dever qualificado de agir de maneira razoável e prudente, com eficiência e adequação, razão pela qual se responde pelos resultados danosos que se afastem desses padrões. Diz que, caso a Constituição crie determinada obrigação para o Estado, o legislador não está livre para escolher se a cumpre ou não.6

De qualquer forma, mesmo que reconhecida, no caso concreto, a imunidade material, no sentido de isentar o parlamentar de responsabilidade pelo dano, é possível a respectiva responsabilização do Estado contemporâneo, à luz dos princípios da responsabilidade civil.

Finalmente, consideramos que a negação da impunidade absoluta, qualquer que seja a sua ordem, é relevante para o povo - origem e destino do poder parlamentar - já que produzir leis é função primordial tanto do legislador quanto do Estado.

Fonte: Site Migalhas

Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/377981/a-imunidade-parlamentar-na-omissao-legislativa-e-o-direito-de-regresso 

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